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domingo, 27 de fevereiro de 2011

AUTO DA LUSITÂNIA

Minha professora de literatura me ama, eu sei disso!
Excerto, autoria de Gil Vicente.

Personagens: Ninguém, Todo-o-mundo, Berzebu e Dinato.
[Estão em cena dois diabos, Berzebu e Dinato, este preparado para escrever]

Entra Todo-o-mundo, homem como rico mercador, e faz que anda buscando algua cousa que se lhe perdeu. E logo após ele um homem vestido como pobre. Este se chama Ninguém, e diz:

Ninguém
Que andas tu ai buscando?

Todo-o-mundo
Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando,
por quão bom é perfiar.

Ninguém
Como hás nome, cavaleiro?

Todo-o-mundo
Eu hei nome Todo-o-mundo,
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.

Ninguém
Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.

[Berzebu para Dinato]
Berzebu
Esta é boa experiência!
Dinato, escreve isto bem.

Dinato
Que escreverei, companheiro?

Berzebu
Que ninguém busca consciência
e Todo-o-mundo dinheiro.

[Ninguém para Todo-o-mundo]
Ninguém
E agora, que buscas lá?

Todo-o-mundo
Busco honra muito grande.

Ninguém
E eu virtude, que Deus mande
que tope co'ela já.

[Berzebu para Dinato]
Berzebu
Outra adição nos acude:
escreve logo ai, a fundo,
que busca honra Todo-o-mundo,
e Ninguém busca virtude.

Ninguém
Buscas outro mor bem qu´esse?


Todo-o-mundo
Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fezesse.

Ninguém
E eu quem me reprendesse
em cada cousa que errasse.

[Berzebu para Dinato]
Berzebu
Escreve mais.

Dinato
Que tens sabido?

Berzebu
Que quer em extremo grado
Todo-o-mundo ser louvado,
e Ninguém ser reprendido.

[Ninguém para Todo-o-mundo]
Ninguém
Buscas mais, amigo meu?

Todo-o-mundo
Busco a vida e quem ma dê.

Ninguém
A vida não sei que é,
a morte conheço eu.

[Berzebu para Dinato]
Berzebu
Escreve lá outra sorte.

Dinato
Que sorte?

Berzebu
Muito garrida:
Todo-o-mundo busca a vida,
e Ninguém conhece a morte.

[Todo-o-mundo para Ninguém]
Todo-o-mundo
E mais queria o Paraíso,
sem mo ninguém estrovar.

Ninguém
E eu ponho-me a pagar
quanto devo pera isso.

[Berzebu para Dinato]
Berzebu
Escreve com muito aviso.

Dinato
Que escreverei?

Berzebu
Escreve que Todo-o-mundo quer Paraíso,
e Ninguém paga o que deve.

[Todo-o-mundo para Ninguém]
Todo-o-mundo
Folgo muito d´enganar,
e mentir naceo comigo.

Ninguém
Eu sempre verdade digo,
sem nunca me desviar.

[Berzebu para Dinato]
Berzebu
Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso!

Dinato
Quê?

Berzebu
Que Todo-o-mundo é mentiroso,
e Ninguém diz a verdade.

[Ninguém para Todo-o-mundo]
Ninguém
Que mais buscas?

Todo-o-mundo
Lisonjar.

Ninguém
Eu som todo desengano.

[Berzebu para Dinato]
Berzebu
Escreve, ande lá mano!

Dinato
Que me mandas assentar?

Berzebu
Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo-o-mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.

Marcela Lopes

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