
Hoje, alguns diriam que foi a inocência, a fé, ou o amor próprio. Depois que percebem é tarde demais e ficam buscando palavras para explicar como e porque as coisas acontecem. Ela já sabe o que perdeu, perdeu a vida. Não que tenha perdido num súbito, ou que esta tenha sido levada. Sua vida foi sumindo aos poucos desde aquela primeira porta aberta. Evaporando...
Hoje ela já não vive, por mais que seu corpo insista em acordar todos os dias, tirando os que ela não acorda. Existe muitas formas de morrer e morrer para os outros, pode ter sido a morte mais fácil e inconsciente que ela já tenha sentido. Difícil mesmo foi quando ela percebeu que tinha morrido para si mesma.
Aquela vez em que ela se levantou e não sabia que horas eram, nem que dia, nem em que mês estava. Não se lembrava do último banho que tomara, ou de quando tinha comido. Pensou ter emagrecido por não estar comendo, olhou no espelho, estava bem maior do que se lembrava. Ligou uma música triste, algo como Amy ou Pearl Jam. Black... Back to black... Não conseguia tirar os olhos do espelho, não reconhecia aquela pessoa. Os olhos tinham um brilho estranho ou brilho nenhum.
Respirou fundo uma vez. Não sentindo que o ar tivesse feito qualquer diferença, respirou fundo outra vez. Pensou em quanto tempo aguentaria prender o esta ar e ficou triste por saber que não tem como morrer assim.
Ela sempre soube que era doente, exceto por aqueles breves períodos em que o sexo era bom e que ela sentia que conseguiria engolir o mundo e viver, se pudesse ter mais daquilo. Talvez ainda nesses momentos ela não tenha esquecido que era doente, mas pensava ter encontrado o antidepressivo perfeito.
Uma vez encontrou alguém que a fez se sentir normal. Talvez ela tenha demorado a perceber que essa pessoa só a fazia parecer normal, porque era mais estranha do que ela. E dessa vez não teve sexo e muito menos antidepressivos. Ela achou não precisar mais de remédio algum. A conversa era legal, era uma conversa que ninguém entendia, onde ninguém se entendia. Era conversa de maluco. Não, ela não era maluca, era o que ela insistia em repetir para si mesma, debaixo do chuveiro. Ela não entendia o que era maluquice, loucura, sanidade... nem sabia se eram sinônimos. A cabeça dela doía sempre que tentava entender, então desistiu.
Ela sempre desistia de tudo... das pessoas, amigos, amores. Do casamento, do namoro, do apartamento com piscina. Das drogas, de largar as drogas. Do primeiro curso que sonhou fazer, do segundo, do próximo que ainda iria pensar qual seria. Do pai, dos irmãos, dos avós e não demoraria, também da mãe. Desistiu da pintura, da dança, da moda, da escrita, de aprender a tocar violão. Cada vez que desistia de algo, um novo corte se abria e por ele ia embora mais vida. Queria desistir da vida, mas tinha medo demais.
Pensava um dia falar: eu morri, eu me matei lentamente, as vezes bruscamente, um dia totalmente. Mas não foi por bobagem! Ela jurou não morrer pela mensagem não recebida, pela conta nunca paga, pela roupa nova que queria, pelo pó que não devia ter cheirado, pelo sexo mal acabado, pelos beijos não dados, pelas conversas deixadas de lado. Ela queria morrer, mas não queria que fosse por alguém e sim por ela mesma. Porque ela precisava. Porque a vida cansava e ela já não aguentava mais ficar deitada.
Ela era tão linda, tão única, jovem, amada. Era irreverente, cheia de excentricidades. Ouvia rock por obrigação, mpb por paixão e funk por tesão. Se tinha uma coisa que ela era, era inteligente. Amavam ouvir ela falar, até que ela começasse a gritar. Ela amava gritar, amava barulho, chamar atenção. Gostava de elogios e de elogiar, mas gostava mais ainda de ser grossa. Duas coisas que ela sempre fez bem, desde que fez a primeira fez; grosseria e sexo.
Ela também traía. Traía por prazer, por jogo, por emoção e por ter medo de ser traída. Mas dizia trair por gostar, para não confessar seus temores. Ela odiava ficar sozinha, mas amava afastar as pessoas. Não sabia pedir um tempo, que não fosse a vida inteira. Por mais curta que a sua seria. Não sabia a hora certa de acabar, sempre passava do ponto. Preferia vírgulas, vírgulas, vírgulas, reticências...
Então, numa sexta feira, que sabia ser sexta porque querer beber vodka, ela morreu. Morreu por que quis. Morreu porque conseguiu. Morreu sozinha, na cama, com o notebook na barriga. Um cigarro ainda queimava no cinzeiro, mas o copo de vodka com Coca já estava vazio. Ou então foi tomado pelo primeiro que chegou para constatar a morte. Nunca saberemos... Morreu, dessa vez não só de alma. No seu computador, apitava bateria fraca.
Marcela Lopes
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